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Carta aos socialistas


Nós somos adversários e, no entanto, o objectivo que ambos perseguimos é o mesmo. Qual é o objectivo comum dos economistas e socialistas? Não será uma sociedade em que a produção de todos os bens necessários para a manutenção e embelezamento da existência humana é a mais abundante possível, e em que a distribuição dos mesmos bens por aqueles que os criaram, através do seu trabalho, seja a mais justa possível? Não será que o nosso ideal comum, sem distinção de escolas, pode ser resumido em duas palavras: abundância e justiça?

Esse, nenhum de vós pode negar, é o nosso objectivo comum. Só que o abordamos por vias diferentes; vocês avançaram através do desfiladeiro escuro e inexplorado, até agora, da organização do trabalho, enquanto nós optámos por percorrer a avenida – espaçosa e bem conhecida – da liberdade. Cada um de nós está a tentar apontar o caminho para uma sociedade que avança hesitante e tacteante, perscrutando o horizonte, procurando – em vão – a coluna de luz que terá guiado, no passado, os escravos dos faraós à Terra Prometida.

Por que se recusam a seguir-nos na via da liberdade? Porque, respondem, esta liberdade que defendemos é fatal para os trabalhadores; que só produziu, até à data, a opressão dos fracos pelos fortes; porque deu à luz crises desastrosas em que milhões de homens perdeam, em alguns casos, a sua riqueza, e noutros, as suas vidas; porque a liberdade descontrolada, sem regras, sem limites – é a anarquia!

Não é esta a razão pela qual rejeitam a liberdade? Não é esta a razão pela qual exigem a organização do trabalho?

Muito bem; se vos conseguirmos provar, com suficiente clareza, que todos os males que atribuem à liberdade – ou, para usar uma expressão absolutamente equivalente, à livre concorrência – tem origem, não na liberdade, mas na falta de liberdade, nos monopólios, na servidão; se provarmos ainda que uma sociedade perfeitamente livre, uma sociedade sem quaisquer restrições, quaisquer obstáculos, tal como nunca visto no passado, estaria livre da maioria das misérias do presente regime; se vos provarmos que a organização de uma tal sociedade seria a melhor, a mais justa, a mais favorável ao desenvolvimento da produção e distribuição equitativa da riqueza; se vos provarmos isso, pergunto-vos: que fariam? Continuariam a proibir a liberdade do trabalho e a investir contra a economia política, ou juntar-se-iam francamente à nossa bandeira, usando todo o precioso tesouro de forças intelectuais e morais com que a natureza vos dotou para contribuir para o triunfo da nossa, agora, causa comum – a causa da liberdade?

Ah! Seria capaz de jurar que não hesitariam um momento. Se admitissem que entenderam a verdadeira causa dos males que afligem a sociedade e os meios para resolvê-los; se admitissem que a verdade está do nosso lado, e não do vosso, nenhum resquício de vaidade, ambição ou sectarismo seria suficientemente fortes para mantê-los a laborar num erro: os vossos corações ficariam entristecidos, sem dúvida; lançariam um último adeus, arrependidos, aos sonhos que alimentaram, encantaram, e iludiram a vossa imaginação; mas, no fim, abandonariam essas amadas quimeras, superariam a vossa repugnância, e juntar-se iam a nós. Por Deus, nós, do nosso lado, fariamos o mesmo, se tivessem sucesso em introduzir nas nossas fracas mentes um raio daquela luz que converteu S. Paulo; se porventura nos demonstrassem, de forma clara como o dia, que a verdade está no socialismo e não na economia política. Nós defendemos o nosso sistema enquanto o tivermos como certo e verdadeiro; amanhã mesmo, sem qualquer revolta interna, queimaríamos o que nós amamos, e adoraríamos fazê-lo, se nos fosse provado que os nossos deuses, Smith, Turgot, Quesnay e J.B. Say não são mais que uns miseráveis ídolos de madeira.

Estamos, uns e outros, desprovidos de qualquer sectarismo – tomando esta palavra em sentido estrito; a nossa visão eleva-se para uma esfera mais elevada, os nossos pensamentos seguem um vôo mais generoso: a verdade, o justo,o útil, são os nossos guias imortais através dos círculos obscuros da ciência; a humanidade é a nossa adorada Beatriz!

Estando de acordo sobre isso, coloco claramente a questão que nos separa.

Vocês afirmam que a sociedade sofre por causa da liberdade; nós afirmamos que ela sofre por causa da servidão.

Vocês concluem que se deve suprimir a liberdade e substituí-la pela organização do trabalho; nós concluímos que devemos remover escravidão e substituí-la, pura e simplesmente, pela liberdade.

Comecemos pelos factos. De quando data a liberdade de trabalho? Foi proclamada pela primeira vez por Turgot num édito imortal e sancionada, mais tarde, pela Assembleia Constituinte.

Mais tarde irei referir-me ao modo como esta santa liberdade foi novamente limitada e acorrentada; por agora apenas notarei que só nasce no final do século XVIII.

Qual era, pergunto-vos, a condição das massas trabalhadoras até ao fim do século XVIII? Seriam os trabalhadores mais felizes antes deste tempo do que têm sido desde então?

Se eram mais felizes, oh!, então concordo convosco, a liberdade foi uma prenda fatal para o mundo, e têm razão quando apelam para uma organização do trabalho tendo como modelo o antigo Egipto ou a Europa medieval.

Mas se, em vez disso, as condições de vida da massa do povo são agora superiores às que eram antes de ’89, não serão forçados a admitir, de boa-fé, que a liberdade de trabalho foi um benefício para a humanidade?

Percorramos rapidamente, em conjunto, toda a história passada, a história dos trinta séculos de servidão que precederam o advento da liberdade do trabalho e contemplemos o espectáculo que se desenrola diante dos nossos olhos.

Será mesmo um espectáculo de riqueza e igualdade universais? Quisera Deus!, mas não. É, em vez disso, uma imagem de uma pobreza mais intensa e duma desigualdade mais profunda do que aquelas que agora temos à vista. E quanto mais nos afundamos no passado, afastando-nos mais do dia em que, finalmente, a liberdade abençoou o mundo, mais escuro e hediondo este quadro de pobreza e desigualdade social se nos apresenta .

Se voltarmos à Índia e ao Egipto antigos, que vemos? Duas poderosos castas, a casta dos sacerdotes e guerreiros, que oprimem e exploram sem compaixão uma multidão miserável! No topo destas sociedades primitivas, formadas a partir de camadas colocadas umas sobre as outras, como blocos de granito, encontramos os sábios, vestidos de púrpura, que discutem a essência da divindade ou o curso das estrelas, e os guerreiros que se embriagam nos aromas profundos dos seus haréns; enquanto, por baixo, vegetam os párias cobertos de vergonha ou os escravos que amassavam com o seu suor e as suas lágrimas o edifício rude e gigantesco das pirâmides. O mal nessas sociedades primitivas, perguntamos, era resultado da liberdade ou da escravidão?

Consideremos o mundo romano. O que é encontramos no núcleo desta sociedade, que era a mais rica e poderosa da antiguidade? De um lado, um patriciado composto por um número muito pequeno de homens enriquecidos com os despojos do universo. A vida destes homens, como sabem, era uma sucessão de batalhas sangrentas e orgias imundas! Ao lado desta casta toda-poderosa que se banqueteava com a substância de um mundo inteiro, como os abutres se banqueteavam com os cadáveres dos vencidos por Marius – ao desta casta opulenta e saciada, o que vemos? Uma multidão de proletários empobrecido e a vil multidão de escravos! Vocês falam sobre as misérias da nossa classe operária; meu Deus, por muito dolorosas e lamentáveis que sejam, estas misérias não se comparam às dos proletários romanos. Pelo menos as nossas classe trabalhadoras trabalham, não imploram! Não vemos as pessoas de nossos escuros subúrbios a fazerem filas à porta na nossa endinheirada aristocracia a implorar esmola! Não as vemos a atirarem-se, como cães esfomeados, às migalhas que os ricos sacodem das suas mesas com mão desdenhosa e incomodada! Nem as vemos a provocarem motins, todos os dias, para obterem a distribuições gratuita de alimentos. Não! Os trabalhadores de hoje levam, indubitavelmente, uma vida pobre; mas esta vida é produto do seu trabalho, do poder de ganhar o seu próprio sustento. O proletariado romano nunca poderia ganhar o seu próprio sustento. Os ricos patrícios monopolizavam todas as indústrias e toda a terra que eram trabalhadas pelos seus escravos. Vítimas desta concorrência desigual, os proletários tiveram que escolher entre mendicância, exílio ou morte. Tiveram que viver da caridade. No entanto, o destino desses proletários desprezíveis era mil vezes melhor que a dos escravos. O proletário, pelo menos, era um homem; o escravo, esse era apenas uma variedade da besta de carga, uma coisa! O escravo não possuía nada, nem mesmo um nome. Certamente que os pobres trabalhadores do nosso país merecem a nossa compaixão, eles que passam a vida dobrados para o chão, recebendo em troca do seu duro trabalho nada mais que um pedaço de pão preto para comer, um pano grosso como vestuário, e uma cabana feita de lama como abrigo; por mais dolorosa que fosse a sua existência, quantos escravos romanos não os invejariam! Recordemo-nos das histórias de Plínio e Columella. No coração dos campos verdejantes de Itália, encontravam-se, a intervalos, casas escuras e imundas chamadas ergástulos. Eram prisões ou, melhor, estábulos de escravos. De manhã, saíam em colunas, geralmente acorrentados; eram espalhados pelo campo, conduzidos por capatazes armados com chicotes, cada sulco na terra arada regado pelo seu suor e sangue. À noite, levavam-nos de volta para os ergástulos, onde eram amarrados, como alimárias, às suas gamelas. Para eles, nenhuma família, mas a promiscuidade imunda! Nenhum Deus, apenas um destino inexorável que os desclassificavam da humanidade, e que não lhes permitia alimentar a esperança numa outra vida! Essa era, como sabem, a situação das massas trabalhadoras na antiguidade. E, no entanto, o mundo ainda não tinha sido sujeito à lei do laissez-faire!

Mais tarde, que mais vemos? Será que a situação das pessoas melhorou muito com a queda do monstruoso edifício do Império Romano? Moralmente, sim, provavelmente, na medida em que o cristianismo oferece-lhes consolações sublimes; materialmente, não! Durante a Idade Média, a vida das pessoas – sejam servos do solo no campo, ou servo das empresas nas cidades – é uma longo novelo de angústia. A idade média é uma era de dor e tristeza, e entre as vozes dos que se lamentam pode-se distinguir a grande e sombria voz do povo. Mais tarde ainda, depois de tantas e frutíferas descobertas, depois da pólvora ter feito justiça à tirania dos nobres feudais, depois da impressão ter dissipado a escuridão da mais espessa ignorância, depois da bússola nos ter dado um novo mundo, será que então as pessoas deixaram de sofrer? Sob Louis XIV, durante o reinado do rei de quem se disse que tenha elevado tão alto a glória e o poder da França, qual era a condição das pessoas? Seria melhor que a das pessoas hoje? Todos conhecem a famosa passagem do Real Dízimo de Vauban, em que este homem ilustre bem caracterizou, em termos angustiantes, o estado da França:

“Certamente”, disse, “que o mal foi levado ao extremo, e se não for corrigido, as pessoas mais humildes irão cair numa situação da qual nunca mais poderão sair; as grandes estradas da zona rural e as ruas de cidades e vilas estão cheias de mendigos que a fome e nudez impelem a sair de casa.”

“De toda a investigação que fiz durante os muitos anos em que me dediquei a ela, percebi que nos últimos tempos quase um décimo das pessoas anda a mendigar, implorando; dos outros nove décimos, cinco não são capazes de lhes dar esmolas já que, eles próprios, não estão muito longe dessa infeliz condição; dos restantes quatro décimos, três estão a braços com dívidas e ações judiciais; e no décimo final – onde coloco todos os homens da espada e da toga, eclesiástica ou secular, toda a a alta e distinta nobreza, as pessoas com cargos militares e civis, os comerciantes prósperos, os burgueses rentistas e as classes aforunadas – , não contamos com cem mil famílias; e não acredito que estarei a mentir disser que não existem dez mil famílias, pequenas ou grandes, que possam levar uma vida confortável..”[Coleção dos Principais Economistas, edição Guillaumin, vol. I, p. 34]

Tal era a condição das pessoas antes do advento da liberdade de trabalho.

Além disso, durante este longo período de sofrimento, qual era o grito da multidão? Que exigiam os cativos do Egipto, os escravos de Spartacus, os camponeses da Idade Média, e mais tarde os trabalhadores oprimidos pelo empresas e corporações? Exigiam liberdade!

Eis o que diziam, uns para os outros: as nossas consciências, os nossos pensamentos, o nosso trabalho são oprimidos e explorados por homens que nos dominaram pela força ou pela astúcia. Alguns proíbem-nos de adorar a Deus e orar de forma diferente da que corresponde à sua fórmula; outros forçam-nos a estudar Deus, a natureza e o homem pelos seus livros, aprisionando o nosso pensamento no círculo de ferro dos seus sistemas, ameaçando-nos com a pena de morte, se os violarmos; outros há, finalmente, que depois de terem acorrentado as nossas almas, acorrentam os nossos corpos. Obrigam-nos a permanecer enraizados, como uma planta, no lugar de nosso nascimento e aí, exercem o seu privilégio de confiscar a maior parte do fruto do nosso trabalho e do nosso suor. Quebremos estas correntes que nos ferem a carne, mesmo correndo o risco de perder a própria vida; exigamos a liberdade da alma e do corpo para todos; reclamemos, para todos, o direito natural de acreditar, pensar e agir livremente – e os nossos sofrimentos terminarão. Será que as nossas almas não ficarão satisfeitas quando lhes pudermos proporcionar a liberdade de acesso a um mundo imaterial – a capacidade de navegar no vasto e maravilhoso oceano da razão, sem ser retida pelo cabo de ferro de um sistema imposto? Será que as nossas necessidades físicas não serão totalmente satisfeitas quando tivermos um acesso livre ao mundo material – quebradas as correntes que nos aprisionam, que nos impede de trabalhar e de trocar os produtos desse trabalho ao longo de toda a superfície desta terra fértil com que a Providência generosamente nos abençoou? Deixem-nos ser livres, e seremos felizes!

Este era o grito da humanidade oprimida. Bem! Então acham que a humanidade estava enganada quando lançava, século após século, este longo grito de angústia e esperança? Acham que, ao perseguir constantemente a liberdade, corria atrás de uma miragem vã? Não! Digam o que o vosso coração sente, e não se atreverão a afirmá-lo; não se atreverão, oh Brutus do socialismo, a dizer que a liberdade é uma palavra sem conteúdo!

Argumentarão, certamente, que a humanidade ainda sofre! Provavelmente. Mas – e insisto em que retenham este facto – sofreu muito mais antes do advento da liberdade no mundo e os seus sofrimentos foram mais duros e intensos do que são hoje.

Não podem, pois, sem serem culpados dum anacronismo grosseiro, imputar à liberdade os males das classes trabalhadoras antes de ’89; será, porventura, mais justo imputarem à liberdade aqueles que têm, desde então, esmagado os trabalhadores? Isto é o que reservo para examinar numa futura carta.

Um Sonhador

Gustave de Molinari, Carta aos socialistas (1848)

Esta carta aos socialistas apareceu sob o título Utopia da Liberdade no Journal des Économistes vol. 20, no. 82. – June 15th, 1848 (pp. 328-332).

Traduzido por Autre Rêveur para o Partido Libertário Português

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