Os saldos…
O governo português anunciou, no passado dia 8, a aprovação do diploma sobre o regime de acesso e troca automática de informações financeiras no domínio da fiscalidade (1). Para que não nos esqueçamos de quem é que, efectivamente, produz a legislação, informa que se trata da transposição de uma directiva da Comissão Europeia. Acrescentando-lhe um ponto, o governo “decidiu ainda, executando a autorização legislativa presente no Orçamento de Estado, estender as regras referidas nos pontos anteriores, com as necessárias adaptações, ao acesso automático a informações financeiras relativas a residentes em território nacional”. E assim, a autoridade tributária passará a ter acesso à identidade – e outros dados – de todos os cidadãos nacionais, residentes em Portugal ou no estrangeiro, cujas contas bancárias excedam os €50.000,00. Tudo, claro está, em nome do combate à “fraude e evasão fiscais, ao branqueamento de capitais e ao financiamento da criminalidade organizada e do terrorismo”(2). Porque, como diz o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, trata-se de uma “opção colectiva da sociedade portuguesa” (3).
Os movimentos…
Mas será que “só” os saldos é que são controlados? A realidade, neste momento, já ultrapassa, em muito, esse âmbito. Os movimentos bancários já são, actualmente, monitorados pelas instituições de crédito (4).
Por outro lado, numa frente – aparentemente – distinta da que referimos, está em vigor, desde o início deste ano, uma directiva (5) que inclui os depositantes com saldos acima dos €100.000,00 (que não estão garantidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos) no lote dos que têm que socorrer o seu banco – logo a seguir aos seus accionistas e obrigacionistas – em caso de dificuldade do mesmo, “em muitos casos mesmo após o fundo de resolução financiado pelo sistema bancário e o fundo de garantia de depósitos do país em que está localizado terem intervindo para ajudar a estabilizar o banco” (6).Isto é o que já temos. O que virá a seguir?
Os débitos directos.
Neste momento, começam a surgir, com insistência, defensores de uma sociedade do dinheiro desmaterializado – a cashless society (7). E alguns países já começaram a caminhar nesse sentido (8).
Os argumentos a favor dessa mudança incidem, para já, na redução dos custos de transacção (9) (que também foram invocadas para a criação de uma moeda única). Mas, a curto prazo, começaremos a ver outros argumentos, do tipo “em nome do combate à fraude e evasão fiscais, ao branqueamento de capitais e ao financiamento da criminalidade organizada e do terrorismo” e “se todos pagarem os seus impostos, cada um irá pagar menos” – que já hoje são usados para incentivarem os contribuintes a agir como agentes da autoridade tributária, denunciando casos de incumprimento na emissão ou reporte de facturas – para justificar a bondade da transição para uma sociedade em que o dinheiro, com curso legal e forçado, reside apenas em contas bancárias.
Num futuro não muito distante, em que toda a moeda seja exclusivamente escritural, mantida e suportada por um sistema interbancário de pagamentos, podemos imaginar a adopção de novos modos de cercear a liberdade de escolha individual como, por exemplo, através da tributação progressiva – não em termos de rendimento, como já hoje é – mas noutra dimensão: na do consumo. Por exemplo, em nome da sua saúde e das finanças públicas, o consumo do segundo maço de cigarros consumido num determinado período de tempo, ou do segundo refrigerante com alto teor de açúcares, ou qualquer outro consumo considerado “inapropriado” ou “moralmente condenável”, terá uma taxa de IVA aplicada, e cobrada automaticamente, de 150% da taxa base; para um terceiro, será de 200%… Daqui até chegarmos ao argumento do “em nome da justiça social” vai apenas um pequeno passo.
E ainda vai ser pior. Decorrente da novo mecanismo de apoio aos bancos em dificuldades (bail-in), a que nos referimos mais acima, se tiver a pouca sorte de o seu banco ir à falência no preciso momento em que o saldo da sua conta à ordem se encontra, excepcionalmente, acima dos €100.000,00 – por exemplo, enquanto não utiliza a receita da venda da sua casa actual para pagar a sua futura casa, devidamente salvaguardada com o respectivo contrato de promessa de compra e venda – terá que, quer queira, quer não, contribuir com o seu dinheiro para ajudar o seu banco e os respectivos banqueiros (10).
Bem-vindos ao admirável novo mundo orwelliano. Para que aconteça, basta que todos fiquemos de braços cruzados.
Notas:
(1) Em www .portugal.gov.pt/pt/ministerios/mf/noticias/20160908-seaf-evasao-fiscal-internacional.aspx.
(2) www .portugal.gov.pt/media/21223281/20160908-seaf-evasao-fiscal-internacional.pdf
(3) www .publico.pt/economia/noticia/acesso-as-contas-bancarias-e-restricao-necessaria-para-combater-a-fraude-diz-governo-1744081?page=1
(4) Para os mais incrédulos, aconselha-se a consulta da directiva (UE) 2015/849, em eur-lex .europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32015L0849&from=EN (pdf, 45 páginas). E, ainda, toda a outra legislação nacional listada em www .bportugal.pt/pt-PT/Supervisao/BranqueamentoCapitaisFinanciamentoTerrorismo/Paginas/Legislacaoenormas.aspx
(5) Directiva 2014/59/UE, disponível em eur-lex .europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32014L0059&from=en (pdf, 159 páginas).
(6) www .europarl.europa.eu/news/en/news-room/20131212IPR30702/deal-reached-on-bank-%E2%80%9Cbail-in-directive%E2%80%9D
(7) Ver, por exemplo, The Curse of Cash, de Kenneth S. Rogoff.
(8) Por exemplo, a Coreia do Norte, a Dinamarca, o Japão e a Suécia.
(9) A McKinsey, noblesse oblige, também já realizou o seu estudo a ratificar esta medida (pdf, 8 páginas).
(10) O que, para além da injustiça – trata-se de confisco, puro e simples, da riqueza dos depositantes – gera ainda maiores ineficiências no sistema financeiro, através do aumento da selecção adversa e do risco moral .